Diário de um sacerdote idoso - Sem. Raifran Sousa

25/02/2012 23:02

 

 
Quando o galo ainda canta nos montes da chapada.Quando os passos do boiadeiro ainda são vagarosos pelo sono que ainda pesa.Quando o sol ainda não bateu nas costas da cabocla. Quando as crianças ainda são embaladas pelo ninar do sono. Quando o cheiro do café fresquinho já se espalha pelo recanto. Esse é o tempo que me levanto. Que coloco meus pés ao chão e novamente traço sobre meu corpo já idoso o sinal da cruz. Aprendi desde pequeno que quando Deus nos concede mais um dia ele deve ser vivido na intensidade do coração. Escovo meus dentes, faço a barba, tomo meu banho e vou cantando utopia de padre Zezinho. Canção de memórias minhas, pois me faz recordar os dias em minha casa. Coloco minha batina e rezo a oração que aprendi no seminário. Muitos me chamam de atrasado, outros de velho, alguns dizem que o tempo passou e eu ainda uso essa roupa velha. Contudo não deixo minha velha companheira. Ela me lembra de quem sou e diz para os outros quem sou eu. Ela me tira da vaidade, ela redobra minha humildade e caridade.
Na capela chego cedo a fim de poder rezar. Oração é o alimento que nutre os meus dias. Os meus passos não são mais rápidos como antes e os meus olhos podem estar um tanto cansados, mas não existe fadiga para quem decidiu fazer da vida um serviço para sempre. O corpo cansado é o sinal da vida que levo. Não é cansaço do corpo, não é cansaço da mente é na verdade as marcas turvas do tempo que tenho andando nessa terra. E sentado todo dia nessa cadeira velha como eu, que observo os rabiscos que a vida tratou de traçar nas páginas da minha história. É aqui no silêncio do oratório, no mudo vento que bate nas cortinas que vejo o amor o esperado. Ele bem sabe que a saudade da mocidade às vezes bate e do tempo que fazia muito mais, mas ele também sabe que chega um tempo em que as fibras já cansadas deste corpo se põem a reclamar certo cuidado no feitio de algumas coisas. 
Rezo minhas orações no ritmo das horas do dia. Orações que consagram meu dia e faço dele entreha ao Deus de minha juventude. No café nada de nobre. Gosto daquele cafezinho puro com um pão quentinho. Uma fruta para adoçar a manhã. Cuidado ternos de um velho sacerdote que ainda precisa viver para cuidar de suas almas. Remédios são necessários e obrigatórios. Afinal o tempo marca de suas formas e gestos os corpos humanos. Hipertensão não é brincadeira. E tão logo nos passos vagarosos que ainda posso dar vou a paróquia cuidar dos meus filhos. Almas floridas de encanto divino, almas chagadas de feridas humanas, olhos sedentos de saudades antigas, olhos arrependidos de pecados presentes. Homens, mulheres, crianças e jovens que buscam ao traçar de uma velha mão humana, o gesto divino de um Deus que toca a miséria de nossas almas. Choros contidos e choros remidos. É ali no confessionário que as sujeiras de nossas almas são lavadas na fonte límpida da misericórdia.
Volto para casa ao meio dia, depois de rezar o ângelus com alguns que param antes do almoço na Igreja. Almoço delicioso que Maria de Deus prepara. O nome diz tudo. Ela é de Deus mesmo. Mulher sofrida, batalhadora e que por 20 anos anda comigo. Cuida da casa, faz comida, lava roupas como ninguém. Mulher “arretada” de prendas e dons. Mulher de joelho genuflexo e olhos fechados aos momentos de oração. Almoça comigo a mesa todos os dias. Companhia santa que não dispenso em hipótese alguma. Até o Senhor bispo já sabe disso: Quando ele vem visitar a casa dele aqui na paróquia, Maria de Deus também se se senta à mesa conosco.
A tarde algum tempo de repouso e necessário. Coloco o corpo alçado na cama por uns 40 minutos. Nada de sono prolongado. Volto ao recito que deveria se mais amado pelos sacerdotes: o Confessionário. Ali fico a tarde toda. Atendo os meus filhos e filhas que sedentos esperam.A tarde torno novamente a encontra a razão de tudo isso:Jesus. Ele abençoa todos os meus dias. À noite celebro a missa. Igreja lotada. Os padres novos me perguntam: “O senhor, tão idoso lota uma igreja, tendo em vista que muitos padres de sua idade não conseguem assim fazer?” A resposta é muitos simples: AMOR. Nada mais posso dar a estes pequeninos se não amor. Não sei mexer nessas tecnologias. Tenho um celular que mal sei usar e um computador que ganhei de uma sobrinha (outra coisa que aprendi na marra). Mas nada supera o amor. Não tenho medo de abraçar e dar carinho a cada um deles. E não tenho medo de dizer a verdade a cada um deles. Sou velho, mas a mente ainda é jovem e o amor não envelhece jamais. 
Quando chega a noite em cinzas na casa paroquial, depois de um banho e um lanche noturno, só me resta oração e contrição. E deitar na minha cama, pedindo a Deus a graça se ele assim quiser de um novo dia. Peço perdão a Ele por aquilo que não pude fazer por meus paroquianos no dia que passou, contudo rezo para que eles sejam confortados por seu amor. Quando fecho os olhos, tenho apenas o desejo de um dia acordar de frente com ele dizendo: “Muito bem servo bom e fiel”.